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Passos Coelho está certo, mas…

15 comentários

O Primeiro-Ministro defendeu a existência de cortes salariais (temporários por dois anos, no anúncio) na função pública com o argumento de que os trabalhadores do sector público auferem salários superiores aos do sector privado para funções e características similares.

A evidência a que se refere está, segundo creio, num artigo de 2001 de Pedro Portugal e Mário Centeno, publicado no Boletim Económico do Banco de Portugal, em Setembro de 2001. É possível que existam actualizações desses valores, embora não os tenha conseguido encontrar (e seria de elementar bom senso que tivesse sido pedida uma sua actualização).

O quadro seguinte, retirado do artigo, mostra que esse diferencial oscila entre os 25 e os 18% para as mulheres, e entre os 18 e 7% /8% para os homens. Em qualquer dos casos com a característica de o diferencial ser maior para os rendimentos mais baixos do que para os rendimentos mais elevados. A consequência óbvia do argumento de querer corrigir este “prémio” de salário por se trabalhar na função pública obrigaria a baixar mais nos rendimentos mais baixos. O que nas condições actuais teria sérias consequências de imagem.

Adicionalmente, o “prémio” de salário é maior para as mulheres, o que provavelmente reflecte apenas um enviezamento contra as mulheres no mercado privado de trabalho, em que para as mesmas funções recebem menos. Certamente não se quererá, com argumento de equalização salarial, importar esse tipo de discriminação para o sector público.

Daqui resulta que o argumento usado para justificar esta medida de contenção de despesa (retirar subsídio de férias e de Natal). Os 14% a que correspondem a retirada do subsídio de Natal e de subsídio de férias acrescem aos 5% a 10% de redução salarial do ano passado. O que para os escalões mais elevados corresponde a uma redução de cerca de 23% do salário bruto. Para estes níveis salariais, compare-se o “prémio” salarial que existia de 7 a 8%. Mais do que fica compensado, e que se poderá traduzir a médio prazo numa saída da função pública para o sector privado dos profissionais com maiores remunerações (incluindo aqui os sectores da educação, justiça, saúde, para além dos cargos dirigentes da Administração Pública).  Não será no curto prazo por incertezas de conjuntura e elevado nível de desemprego, mas logo que se note uma animação na actividade privada será natural que esses movimentos surjam.

O argumento de Passos Coelho de maior “prémio” salarial na função pública é no sentido do efeito correcto, mas a decisão tomada, na sua magnitude, esmaga, e inverte, o prémio para as remunerações mais elevadas. Veremos se a prazo se traduzirá num problema de recursos qualificados para o sector público.

Fonte: Portugal e Centeno (2001)

Adenda:

via oinsurgente, do Boletim do Banco de Portugal do Verão de 2009, há uma actualização deste estudo inicial de Pedro Portugal e Mário Centeno, feita por Maria Manuel Campos e Manuel Coutinho Pereira. A Figura desse trabalho dá a informação similar à do Quadro 1 de Portugal e Centeno.

Nestes quadros não é tão fácil perceber os valores exactos do “prémio salarial” associado com a função pública, mas duas características são mantidas:

a) o prémio salarial diminui quando se passa de salários mais baixos para salários mais elevados (quando se passa dos decis mais baixos para os mais elevados);

b) o prémio salarial nos salários mais elevados está claramente abaixo dos 23% e foi mais do que compensado pelas recentes medidas.

Adicionalmente, o trabalho de 2009 faz uma análise por profissões, sendo claro que várias têm “prémio salarial negativo”.

PS: esta análise poderá ser revista se entretanto houver outras estimativas mais actualizadas deste prémio salarial associado com a função pública.

Autor: Pedro Pita Barros, professor na Nova SBE

Professor de Economia da Universidade Nova de Lisboa.

15 thoughts on “Passos Coelho está certo, mas…

  1. Há um estudo de 2009, também do banco de portugal, que chega à conclusão de que o prémio salarial total, para funções equivalentes, seria de 15% e o prémio horário seria de 25%. Nesse estudo também chegaram à conclusão que o prémio tenderia a desaparecer à medida que as remunerações subiam.

    Discutimos a coisa no Insurgente (assim com uns estudos semelhantes feitos para a função pública americana) há uns tempos:

    http://oinsurgente.org/2011/09/05/noticia-sem-transferencias-sociais-funcionarios-publicos-ganhariam-menos-61/

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  2. E a sobretaxa extraordinária?
    Duvido que se fique só pelo subsídio de natal de 2011.

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  3. Muito bem analisado.

    Falta um outro detalhe… no sector privado as remunerações não se ficam pelos salários – muitos colegas têm carro, telemóvel e outros incentivos que aumento o poder de compra de forma significativa.

    Também não é correcto o frequente argumento que na função pública se trabalha menos horas e, por isso, deverá haver um salário mais baixo; nas funções qualificadas trabalha-se, em médio, o mesmo (com menos incentivos).

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  4. O problema maior é que estas diminuições são cegas quanto à produtividade individual, ou mesmo de grupos. É por aí que o Estado deixará de poder reter Recursos Humanos competentes e que será muito difícil ter capacidade para atrair talento, nomeadamente nas funções core do que será um Estado mais magro, num ambiente mais privado…

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  5. Pedro,
    Se calhar existem desvios entre salários na função pública e no privado para funções e características similares, e até em ambos os sentidos, mas, ao que sei, o primeiro ministro falou de médias: “A verdade é que em média os salários na função pública são 10 a 15 por cento superior à média nacional” (Negócios online).
    Não me lembro do governo ter antes trazido o assunto à colação e não creio que assuma a inexistência de desvios, em si mesmo, como um objectivo de política. Por isso senti o argumento do primeiro-ministro sobretudo como um mau argumento de conveniência usado num momento difícil.
    O próprio estudo do BP que mencionas (obrigado pelo serviço que tens vindo a prestar) refere, com clareza, que os funcionários públicos são mais qualificados e com mais experiência do que os trabalhadores das empresas privadas e que, a existência desse diferencial é comum aos demais países ocidentais – o relevante em Portugal seria a dimensão do desvio. O que nos levaria para uma das questões centrais, nomeadamente quanto ao tipo de “convergência” adequada… eu sou daqueles que acredita que sermos mais pobres não nos faz mais ricos e que pensar a competitividade com base na baixa dos custos unitários do trabalho é um incentivo à “não inovação” e ao retrocesso.
    Não sei se o primeiro-ministro comparou o incomparável como invocam em réplica as centrais sindicais… parece-me que andou perto, mas parece-me sobretudo que lançou uma meia verdade a favor do vento … da demagogia.
    É perigoso e mau … e não só pelo que muito bem escreves na frase final do teu texto. É também mau porque, desde já, transfere subliminarmente para os funcionários públicos uma espécie de “odioso” … que é tremendamente injusto e que, para além disso, fere a qualidade intrínseca da coisa pública.
    (Haverá ajustamentos em baixa da produtividade? Seria “economicamente racional”…. Como é que se vai voltar a falar de avaliação?)
    Seria triste… se não fosse trágico!
    Um abraço
    Daniel

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  6. Pingback: Salários públicos e salários privados « BLASFÉMIAS

  7. Pedro
    Esta é mais uma evidencia da imaturidade deste governo nalgumas áreas.
    As comparações entre as remunerações da Função Publica (porque não ir para o conceito de função publica alargada que envolve o SEE, Fundações,Institutos, Agências,etc? para que se tivesse um verdadeiro “retrato” dos estragos “sociais e socialistas”) para alem das evidencias que já existiam (e que no teu post muito bem analisas e alguns comentários reforçam), face as remunerações do sector privado em Portugal (total compensation) não deixam de ser entendidas com as medidas “vesgas” (menos que cegas) que foram tomadas para nos encaminhar para mais uma cena a exemplo do que aconteceu com a RAPCC (reforma da APublica Central Cavaco) e a RAPCS (Reforma da AOP Sócrates), tipicamente sublinhada com uma máxima ” era urgente”.Tinha de ser assim, etc.
    Não terá sido porque a Troikinha não queria mais impostos e no sector privado não se cortam meses por decreto a não ser em tempo de guerra?
    Estas medidas do “corte à vista de 2 anos” não são passos de coelho.São passos de rato cego na crença que a inicitativa privada irá disparar investimentos e empregos às paletes.E que entretanto haverá petróleo no Beato. E ouro as ourivesarias. E funcionários publicos nas tesourarias.
    Pobres funcionários publicos que dão litros e litros de suor e saberes, (face a uma enormidade dos muitos dos tais 700 000 que deviam ir para casa, remunerados a 12 meses) e que com a sua dedicação ainda fazem a máquina funcionar depois de mil pontapés gramaticais, legais e financeiros, dados por sucessivos governos.
    Nem Prace nem Pramec.Muito Altos e esforçados Quadros da Função Publicas vão mandar estes governantes tal como anteriores pra…m….Rezar para pedir perdão por tanta falta de rigor.
    Passos está certo.Mas tropeçou em grande.
    Abraço
    Francisco

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  8. @Tomás Belchior – obrigado pela informação. Já incorporei numa revisão do post. A minha mensagem principal mantém-se.

    @Ferrari Careto – totalmente de acordo, há que diferenciar de acordo com a produtividade. No caso da função pública, com a grelha salarial existente, só se pode concretizar com promoções não automáticas. Que estão congeladas.

    @Daniel – o meu alerta é precisamente para o perigo de se falar na média. Aliás, se a prazo os quadros mais qualificados da função pública a deixarem, o “prémio salarial” médio até irá aumentar – saiem os que contribuem para baixar a média ! A média é aqui má conselheira; como se diz numa velha piada, quem colocar a cabeça no forno e os pés no congelador não deixa de ter uma boa temperatura média.

    @Daniel & @Francisco – a heterogeneidade da função pública faz com que a “preguiça” de uns se lance como uma etiqueta para todos os que se esforçam. Depois dos vossos comentários, fiquei a pensar que seria interessante devolver o subsídio de Natal de 2012 condicional a elevada produtividade (que é diferente de “presentismo” – estar no local de trabalho muito tempo, mesmo que nada se produza).

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  9. Caro Pedro Pita Barros,

    O estudo que refere, a meu ver, não permite tirar grandes conclusões. No segundo, de facto, isso já é possível. Agora, têm que ser tiradas com muito cuidado face às fontes de informação a que se recorre num caso e noutro.

    Existe um prémio significativo no caso dos trabalhadores não qualificados. Só que os não qualificados, nesse estudo, representam 90% no privado e 50% na Administração Pública. Só que nestes casos não se verificam na mesma dimensão os cortes dos subsídios de férias e de Natal.

    Quando se comparam os trabalhadores qualificados, os próprios autores consideram que nem sempre esse exercício é completamente legítimo. Há profissões que não têm equivalente no privado (juízes, procuradores, diplomatas, etc). Noutras, o público é de tal forma dominante que não existe propriamente um mercado concorrencial (professores universitários, médicos, etc).

    Quando são efectivamente compráveis, as conclusões são exactamente ao contrário. Na média, um engenheiro, um informático, um jurista ou um economista da função pública ganha menos, respectivamente, -4,3%, -13,8%, -1,1% e – 18,6% do que um trabalhador com idênticas habilitações no sector privado. Este diferencial no terceiro quartil passa para -19,1%, -26,3%, -21,8% e – 36,6%. Este diferencial ocorre, ainda por cima, sem se tomarem em consideração “compensações em espécie e outros benefícios, que têm particular relevâncias no sector privado”, como referem os autores.

    Sendo assim, os cortes dos subsídios que incidem sobre estes profissionais mais não fazem do que alargar este diferencial. Mais se Administração Pública já não era concorrencial, agora ainda o será cada vez menos. Talvez seja isso mesmo que se pretende.

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